Quarta-feira de Cinzas – Santa Missa

23 de fevereiro de 2023

Homilia do Papa Francisco

«É este o tempo favorável, é este o dia da salvação» (2 Cor 6, 2). Com esta frase, o apóstolo Paulo ajuda-nos a entrar no espírito do tempo quaresmal. De facto, a Quaresma é o tempo favorável para regressar ao essencial, despojar-nos daquilo que nos sobrecarrega, para nos reconciliarmos com Deus, para reacender o fogo do Espírito Santo que habita escondido por entre as cinzas da nossa frágil humanidade. Regressar ao essencial. É um tempo de graça para pôr em prática aquilo que o Senhor nos pediu no primeiro versículo da Palavra que ouvimos: «Convertei-vos a Mim de todo o coração» (Jl 2, 12). Regressar ao essencial, que é o Senhor.

É precisamente o rito das cinzas que nos introduz neste caminho de regresso, fazendo-nos dois convites: regressar à verdade de nós mesmos e regressar a Deus e aos irmãos.

Antes de mais nada, regressar à verdade de nós mesmos. As cinzas recordam-nos quem somos e donde vimos, reconduzem-nos à verdade fundamental da vida: só o Senhor é Deus e nós somos obra das suas mãos. Esta é a verdade de nós mesmos. Temos a vida, enquanto Ele é a vida. Ele é o Criador, enquanto nós somos barro frágil que é plasmado pelas suas mãos. Vimos da terra e precisamos do Céu, d’Ele; com Deus, ressurgiremos das nossas cinzas, mas, sem Ele, somos pó. E enquanto humildemente inclinamos a cabeça para receber as cinzas, tragamos à memória do coração esta verdade: somos do Senhor, a Ele pertencemos. Com efeito, Ele «formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida» (Gn 2, 7), isto é, existimos porque Ele insuflou em nós a respiração vital. E, como Pai terno e misericordioso que é, vive também Ele a Quaresma, porque sente desejo de nós, espera-nos, aguarda o nosso regresso. E não cessa de nos encorajar a que não desesperemos, mesmo quando caímos no pó da nossa fragilidade e do nosso pecado, porque «Ele sabe de que somos formados, não Se esquece de que somos pó da terra» (Sl 103, 14). Deixai que vo-lo repita: Ele não Se esquece de que somos pó da terra. Deus sabe-o, ao passo que nós, muitas vezes nos esquecemos disso, pensando que somos autossuficientes, fortes, invencíveis sem Ele; recorremos a maquilhagens para nos julgarmos melhores do que somos: somos pó.

Por isso a Quaresma é o tempo para nos lembrarmos quem é o Criador e quem é a criatura, para proclamar que só Deus é o Senhor, para nos despojarmos da pretensão de nos bastarmos a nós mesmos e da mania de nos colocar no centro, ser o primeiro da turma, pensar que podemos, meramente com as nossas capacidades, ser protagonistas da vida e transformar o mundo que nos rodeia. Este é o tempo favorável para nos convertermos, começando por mudar a visão que temos de nós mesmos no nosso íntimo: quantas desatenções e superficialidades nos distraem daquilo que conta, quantas vezes nos concentramos nos nossos gostos ou naquilo de que carecemos, distanciando-nos do centro do coração, esquecendo-nos de abraçar o sentido da nossa presença no mundo. A Quaresma é um tempo de verdade, para fazer cair as máscaras que pomos todos os dias a fim de aparecer perfeitos aos olhos do mundo; para lutar – como nos disse Jesus no Evangelho – contra as falsidades e a hipocrisia: não as dos outros, mas as nossas. Olhá-las de frente e lutar.

Existe, porém, um segundo passo a dar: as cinzas convidam-nos também a regressar a Deus e aos irmãos. De facto, se voltamos à verdade daquilo que somos e nos consciencializamos de que o nosso eu não se basta a si mesmo, então descobrimos que existimos apenas graças às relações: a relação primordial com o Senhor e as relações da vida com os outros. Assim, a cinza que recebemos sobre a cabeça, nesta tarde, diz-nos que toda a presunção de autossuficiência é falsa e que idolatrar o eu é opção destrutiva, fecha-nos na jaula da solidão: ver-se ao espelho, imaginando que somos perfeitos, imaginando que estamos no centro do mundo. Ao contrário, a nossa vida é primariamente uma relação: recebemo-la de Deus e dos nossos pais, e sempre a podemos renovar e regenerar, graças ao Senhor e àqueles que Ele coloca ao nosso lado. A Quaresma é o tempo propício para reavivar as nossas relações com Deus e com os outros: abrir-nos no silêncio à oração e sairmos da fortaleza que é o nosso eu fechado, quebrar as cadeias do individualismo e do isolamento e voltar a descobrir, através do encontro e da escuta, a pessoa que caminha diariamente ao nosso lado e aprender novamente a amá-la como irmão ou irmã.

Irmãos e irmãs, como se pode realizar tudo isto? Para realizar este caminho – voltar à verdade de nós mesmos, voltar a Deus e aos outros –, somos convidados a percorrer três grandes sendas: a esmola, a oração e o jejum. São as vias clássicas: não são precisas novidades nesta estrada. Jesus disse-o, está claro: a esmola, a oração e o jejum. E não se trata de ritos exteriores, mas de comportamentos que devem expressar uma renovação do coração. A esmola não é um gesto, cumprido rapidamente, para deixar a consciência limpa, para equilibrar um pouco o desequilíbrio interior, mas é um tocar, com as próprias mãos e as próprias lágrimas, os sofrimentos dos pobres; a oração não é mero ritual, mas diálogo de verdade e amor com o Pai; e o jejum não é um simples sacrifício, mas uma atitude forte para lembrar ao nosso coração aquilo que conta e, ao contrário, o que passa. A admoestação de Jesus é uma «advertência que conserva também para nós a sua salutar validade: aos gestos exteriores deve corresponder sempre a sinceridade da alma e a coerência das obras. De facto, para que serve (…) rasgar as vestes, se o coração permanece distante do Senhor, isto é, do bem e da justiça?» (Bento XVI, Homilia na Quarta-feira de Cinzas, 01/III/2006). Demasiadas vezes, porém, os nossos gestos e ritos não tocam a vida, não são verdadeiros; fazemo-los talvez apenas para ser admirados pelos outros, receber aplausos, acumular méritos. Recordemo-nos disto: na vida pessoal, como aliás na vida da Igreja, não contam a exterioridade, os juízos humanos e a aprovação do mundo; conta apenas o olhar de Deus, que nela lê o amor e a verdade.

Se nos colocamos humildemente sob o seu olhar, então a esmola, a oração e o jejum não se reduzem a gestos exteriores, mas exprimem quem realmente somos: filhos de Deus e irmãos entre nós. A esmola, a caridade, manifestará a nossa compaixão por quem passa necessidade, ajudar-nos-á a voltar para os outros; a oração dará voz ao nosso desejo íntimo de encontrar o Pai, fazendo-nos voltar para Ele; o jejum será o ginásio espiritual onde treinamos para renunciar com alegria ao que é supérfluo e nos sobrecarrega, a fim de nos tornarmos interiormente mais livres e voltarmos à verdade de nós mesmos. Encontro com o Pai, liberdade interior, compaixão.

Queridos irmãos e irmãs, inclinemos a cabeça, recebamos as cinzas, tornemos leve o coração. Encaminhemo-nos na caridade: foram-nos dados quarenta dias favoráveis para nos lembrar que o mundo não deve ser encerrado nos limites estreitos das nossas necessidades pessoais e para voltar a descobrir a alegria, não nas coisas a acumular, mas no cuidado de quem está mergulhado nas necessidades e aflições. Encaminhemo-nos na oração: foram-nos dados quarenta dias favoráveis para devolver a Deus o primado na vida, voltando a dialogar com Ele de todo o coração, e não apenas nos momentos de folga. Encaminhemo-nos no jejum: foram-nos dados quarenta dias favoráveis para nos reencontrarmos, para contornar a ditadura das agendas sempre cheias, das coisas a fazer, das pretensões dum eu pessoal cada vez mais superficial e embaraçoso, e escolher aquilo que conta.

Irmãos e irmãs, não desperdicemos a graça deste tempo sagrado: fixemos o olhar em Jesus crucificado e caminhemos respondendo generosamente aos fortes apelos da Quaresma. E no final do percurso, encontraremos com maior alegria o Senhor da vida, encontrá-lo-emos a Ele, o único que nos fará ressurgir das nossas cinzas.

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